“Os regimes de qualidade na União Europeia (UE), nomeadamente os produtos com denominação de origem ou indicação geográfica protegida (DO/IG), constituem uma das mais importantes políticas públicas de promoção do desenvolvimento e da competitividade dos territórios rurais, sendo um dos pilares da diferenciação e competitividade do setor agroalimentar europeu, gerando mais-valias para os produtores, onde a credibilidade e notoriedade junto dos consumidores constitui um pressuposto base para o alcançar.” (decreto-lei nº 61/2020).
Há pois a necessidade de implementar em cada Estado Membro esses regimes, com um conjunto de regras específicas de cada setor.
Embora já anteriormente o setor vitivinícola estivesse regulamentado, foi durante a década de oitenta que ocorre uma importante mudança estrutural no funcionamento e na organização do sector que, devido à adesão de Portugal em 1986 à então Comunidade Económica Europeia, o que implicou que o nosso país teria de vir a cumprir as regras da política agrícola europeia.
Tendo por base a promoção da produção de vinhos de qualidade, a legislação comunitária determinou a definição do conceito de DO, a adoção da classificação qualitativa dos vinhos através das categorias hierárquicas “vinho de qualidade produzido em região determinada (VQPRD), “vinho de mesa com indicação geográfica (IG)” e “vinho de mesa”. Foram ainda criadas as menções tradicionais “Denominação de Origem Controlada” / “DOC” para os “VQPRD” e “Vinho Regional” para os “vinhos de mesa com IG”.
Em termos organizacionais, foi efetuada em 1985 uma revisão profunda pela lei-quadro das regiões demarcadas vitivinícolas (Lei nº 8/85, de 4 de Junho), que veio estabelecer a autorregulação dos interesses profissionais da produção e do comércio de vinho, representados nas comissões vitivinícolas regionais (CVR). Foi definida uma lógica institucional durou até à publicação do Decreto-Lei nº 212/2004, de 23 de Agosto.
Em cada região demarcada é constituída uma comissão vitivinícola regional (CVR) para “garantir a genuinidade e a qualidade dos vinhos da região demarcada e apoiar a sua produção”, tendo assim funções públicas de gestão e controlo da região demarcada e da(s) respetiva(s) denominação(ões) de origem.
Para além de competências específicas definidas no próprio estatuto, deverão as CVR proceder ao cadastro e classificação das vinhas, inventariar as instalações onde se laborem, armazenem e engarrafem os vinhos, executar análises físico- químicas e organoléticas, controlar e fiscalizar todos os produtos vínicos, emitir certificados de origem, selos de garantia e guias de trânsito, promover a divulgação dos produtos vínicos, elaborar, propor e executar projetos de reconversão e reestruturação vitivinícola e colaborar na definição das ações de intervenção dos vinhos produzidos na região.
São exceções a este modelo institucional a região demarcada da Madeira, onde a respetiva gestão competia ao organismo público Instituto do Vinho da Madeira (atual Instituto do Vinho, do Bordado e do Artesanato da Madeira, I.P.), e a região demarcada do Douro, com um quadro institucional específico de gestão partilhada entre o Estado, através do Instituto do Vinho do Porto (atual Instituto do Vinho do Douro e Porto, I.P.), e organismos profissionais da produção e do comércio.
Quase duas décadas depois, verificou-se uma profunda reforma do sector em termos institucionais e também regulamentares à luz da revisão das normas comunitárias entretanto efetuadas. O Decreto-Lei nº 212/2004, de 23 de Agosto, que estabelece a organização institucional do sector vitivinícola, teve como fim a definição das bases essenciais do regime legal do sector do vinho, sendo prevista a sua aplicação às regiões dos Açores e da Madeira com adaptações regulamentares próprias e a adoção de um regime especial adequado às especificidades da região do Douro.
São regulamentadas as DO e as IG vitivinícolas sendo definido pela primeira vez a nível nacional o regime legal da sua proteção, controlo e certificação. É igualmente reconhecida a sua natureza de “património coletivo” e estabelecida a hierarquia institucional na respetiva defesa.
Em termos de organização institucional, nasce o regime das entidades certificadoras (EC) dos produtos vitivinícolas, uma figura legal nova no sector que, embora corresponda ao anterior conceito legal de CVR, implica o reconhecimento dessa qualificação por parte do Ministro da Agricultura.
A natureza jurídica das EC é definida de forma clara: trata-se de associações de direito privado de carácter interprofissional, constituídas por escritura pública, devendo os respetivos estatutos conter disposições sobre as atribuições especificamente, designadamente as relativas à disciplina dos agentes económicos.
Foi portanto suprimida a representação do Estado nos órgãos sociais, sendo as suas funções de acompanhamento efetivo da catividade agora asseguradas pelo conselho fiscal ou fiscal único no plano contabilístico e de gestão.
O princípio geral da representatividade no sentido de que as EC devem assegurar a “representação direta ou indireta dos interesses profissionais ligados à produção e ao comércio dos produtos vitivinícolas da região, em condições de paridade na composição dos órgãos sociais, salvo quando, comprovada e objetivamente, a estrutura do sector de atividade não o permita”.
No Conselho Geral, a forma de assegurar a representação dos interesses profissionais apresenta manifestas diferenças em relação ao regime anterior da Lei nº 8/85: a atribuição do lugar deixa de ser feita por designação das várias profissões da produção e do comércio e passa a ser feita em função do cálculo da representatividade segundo regras definidas por tipo de profissão; os representantes deixam de ser agentes económicos e passam a ser associações e cooperativas das várias profissões da produção e do comércio.
No entanto a experiência acumulada ao longo dos anos, assim como a compatibilização ao regime da recente revisão da Organização Comum do Mercado, levou a que se procedesse a uma alteração do regime vigente tendo sido publicado o Decreto-Lei n.º 61/2020, de 18 de agosto, que vem estabelecer a nova organização institucional do setor vitivinícola e disciplina o reconhecimento, assim como a proteção e controlo das denominações de origem e indicações geográficas dos vinhos, vinagres, bebidas espirituosas de origem vínica e produtos vitivinícolas aromatizados, bem como o regime de reconhecimento das organizações interprofissionais (“OI”) do sector vitivinícola e respetivos instrumentos de autorregulação, revogando o anterior regime (Decreto-Lei nº 212/2004, de 23 de agosto).
Pretende-se com as alterações introduzidas, o aprofundamento do nível de proteção jurídica das denominações de origem (DO) e indicações geográficas (IG), e o reforço da autorregulação, assente no modelo do interprofissionalismo, assim como e a clarificação das atribuições e competências das entidades que desempenham funções delegadas pelo Estado, incluindo os respetivos poderes legais, responsabilidades e deveres de cooperação.
É introduzido no direito nacional todas as normas comunitárias que regem o regime em matéria de reconhecimento, proteção e controlo. Procede-se ao alargamento do seu âmbito de aplicação aos bens e serviços associados ao nome das DO e IG, ao mesmo tempo que são clarificadas determinadas disposições que se prendem com as regras de inclusão de menções de rotulagem associadas direta ou indiretamente aos nomes protegidos quando sejam suscetíveis de confundir o consumidor e concretiza-se também o conceito de consumidor.
É estabelecido com clareza qual a natureza jurídica das Entidades Gestoras (EG) das DO e IG, com funções delegadas pelo Estado, bem como a forma de representação dos seus operadores. Além disso são definidos alguns princípios horizontais aplicáveis a todas as DO e IG, mas conferindo flexibilidade às respetivas EG para definirem regras complementares, que deverão ser presentes nos estatutos e regulamento eleitoral.
Os cadernos de especificações das DO e IG devem poder ser atualizados à luz da evolução tecnológica e das tendências do mercado, tendo em conta o reforço da autorregulação, prevendo que iniciativa do setor possam ocorrer apresentação de propostas de alteração às regras de produção e comércio das DO e IG, que deverão ser devidamente fundamentadas quanto aos objetivos preconizados, nas vertentes agronómicas e enológica e seus impactos esperados na reputação e criação de valor, consagrando-se o direito de oposição por quem demonstre ter interesses legítimos sobre a DO ou IG.
São definidas regras setoriais de aplicação do regime das organizações interprofissionais (OI) ao setor vitivinícola, definindo, as condições em que uma OI pode adotar regras tendentes a regular a oferta ou aprovar acordos de extensão de normas a aplicar a todos os operadores e produtos da DO e IG.
Dadas as regras europeias que prevê a designação de uma entidade competente para a gestão da DO e IG e uma outra entidade independente de controlo, são introduzidas novas modalidades de organização da certificação, ao mesmo tempo que salvaguarda que as entidades gestoras continuam a manter, na plenitude, a sua importância e as suas funções nucleares ligadas à gestão e estratégia das DO e IG.
As EG “passam a poder optar por continuar a acumular as funções de gestão e certificação, mediante determinadas condições de imparcialidade e de segregação interna, ou por externalizar a certificação, constituindo para o efeito um consórcio de certificação com outras DO e IG ou por contratualizar esta função a outro organismo certificador do setor.
De forma a garantir a “igualdade de concorrência” entre as diferentes DO e IG, os planos de controlo de certificação passam a estar sujeitos a aprovação prévia e a níveis mínimos de exigência iguais para todas as DO e IG, devendo obedecer a uma estrutura comum.
As entidades gestoras passam a reportar anualmente os resultados dos seus planos de controlo, segundo uma estrutura predefinida e de acordo com um conjunto de indicadores comuns a definir para todas as DO e IG, de modo a melhorar a prestação de contas por parte das entidades que exercem funções delegadas pelo Estado.
São igualmente clarificadas as atribuições e competências de todas as entidades que nele participam, nomeadamente os respetivos poderes legais, responsabilidades e deveres de cooperação.
Está prevista a criação da denominada Comissão de Acompanhamento das DO e IG, na dependência do Instituto da Vinha e do Vinho, cuja missão é “prestar apoio e consulta especializada às autoridades nacionais competentes, nomeadamente através de pareceres e estudos e conceção e execução de planos de estratégia e de ação”.
Dado o novo quadro jurídico, que foi amplamente discutido com o setor, esperamos estarmos em condições de uma maior uniformidade de aplicação de todo o normativo referente ao setor vitivinícola, assim como uma maior garantia da separação entre quem gere e certifica uma DO ou IG.
Igualmente fazemos votos para que a representatividade nos Conselhos Gerais represente efetivamente os diferentes interesses, devendo as Adegas Cooperativas ocupar os lugares que lhe são devidos em todas as regiões do país.
Fontes:
Leite, Patrícia Maria Pais – Tese de Dissertação de Mestrado em Direito dos Contratos e da Empresa “O património imaterial do sector vitivinícola: denominações de origem, indicações geográficas e marcas” – out 2016
Artigo publicado na revista Espaço Rural nº 138 (Set/Out 2020) – CONFAGRI